quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Urtigão Espírita

Urtigão Espírita

Numa capital de nosso país, uma reunião estava sendo feita a pedido do corpo mediúnico de uma instituição espírita, a contragosto do dirigente, uma personalidade curiosa, contraditória e resmungona. Trata-se do estimado Urtigão, dado à caturrice como só ele mesmo. Contando sua história, Urtigão diz que começou “por baixo”: limpando centro e fazendo sopa. Com o passar do tempo, angariou a confiança de seus correligionários, a ponto de ser eleito presidente. Uma vez “lá em cima”, quem disse querer “descer”? Ele possui bom coração, é verdade, mas suas diretivas assinalavam a necessidade premente de mais estudos... A discrepância de visão com o rumo que aquela casa precisava tomar precipitou a referida assembléia. Abrindo a reunião com a prece habitual, Jorge, um médium alto e gordo, disse:

- Sob os auspícios de Jesus iniciamos e terminaremos esta reunião. Reunião traz a idéia de reunir. Reunir é juntar novamente o que estava junto. Não podemos manter trabalho com um grupo tão desunido. Precisamos marcar encontros sociais, cuja tônica seja amenidades, com o intuito de nos conhecermos uns aos outros melhor. Muitos médiuns saíram da casa por suas idéias e intuições não terem sido ouvidas, seu Urtigão. Eles se sentiram desvalorizados e, por conseguinte, deslocados.

- Cadê aquele médio arto e calado? Ele num veio? – perguntou Urtigão.

- Se for o Juan, ele está afastado, faz seis meses.

- Ah!... Bom, eu pedi que oceis colocasse no paper o que é que é o motivo da ronião. Tô pra entendê qual é. Nóis aqui somo unido, inté demais. Eu não vejo nada de errado. Acho até que tem muita conversa trocada. O que eu vejo de médio conversano na entrada... não é brincadeira. E do tanto que eles conversa, todo mundo já contou sua vida toda pra todo mundo.

- Com todo o respeito, o senhor não foi capaz de identificar que o Juan está afastado, desde há muito. Não acha que isso seja prova de que o senhor não está dando conta do recado mais simples, que é saber de quem o auxilia nos trabalhos e que pode estar precisando de ajuda, em vez de poder dá-la? – arriscou um médium que se sentara mais afastado.

- Eu não corro atrais de médio. A pessoa tem que avisá que tá com pobrema.

- E se a pessoa estiver hospitalizada, em coma? – insistiu o médium isolado.

- Por que cê fala assim? Qué chegá onde? – retrucou Urtigão.

- Porque Juan está em coma!

- Meu Deus, coitado! Bem que eu sempre falo: a proteção do médio é o trabáio. Se ele num tivesse saído da casa, não tava em coma – acrescentou Urtigão.

- Mas o senhor o expulsou da casa, não se lembra?! – fez Cris Helen.

- Pior, pediu para o Maurício dizer a ele que não era bem-vindo aqui. E Maurício, achando que estava servindo a Deus, mandou o recado. As pessoas têm mania de achar que tudo que médium fala, por mais contraditório que possa ser, vem de espíritos superiores. O senhor errou feio, seu Urtigão! – acusou Leninha.

- Humpf! – rezingou Urtigão. Relanceou o olhar, à procura de Maurício. Vendo que este não estava presente e, usando de artifício para desconversar, perguntou:

- E cadê Maurício? Quero vê ele confirmá essa história.

Foi a vez de Rodrigo falar:

- Seu Urtigão, vou ser mais claro. Tenho visto muita coisa tomando rumo errado por aqui. Sobre o caso Juan, aquele que está mais no fundo do poço é o que precisa de mais tratamento, mais socorro, mais ajuda. O senhor tirou, ao menos relativamente a esta casa, a possibilidade de Juan se recuperar. Recusou ajudar. E digo mais: se a convicção espírita dele estiver em formação, é perigoso que o senhor tenha retirado também sua fé e esperança no Espiritismo. Não é o senhor quem diz que todos somos irmãos? Após Juan se recuperar, se decidir-se por ainda freqüentar alguma casa espírita, devemos agradecer a Deus.

Urtigão não tem estudo, mas é muito esperto. Entendera bem o que Rodrigo disse. Como não tivesse o que responder de satisfatório, saiu-se assim:

- Ara! Ele tava envorvido na farra. Muierada, jogo e árco! Eu gosto é do Espiritismo do meu tempo! Médio que era médio tinha morar. Era uns médio “forte”. Hoje num exeste mais isso...

- E tem mais – continuou Rodrigo. – O senhor anda jogando com as pessoas abastadas. Faz concessões a quem tem dinheiro, carro luxuoso, status. As regras da casa são para todos. Por que quem é rico passa pela desobsessão com o estômago cheio de carne e, por outro lado, quem é de condição financeira mediana ou menor ainda, volta pra sua casa, chupando os dedos?! O senhor age como os padres.

- Eu acho que oceis tão muito intelectualizado, estuda demais e dá nisso. Eu num privilegio ninguém. Como esse povo que tem dinheiro é injoado, eu só passo ele na frente da fila do tratamento pra eles imbora logo. Se ficá muita gente doida pra vortá pra casa, atrapaia a vibração do trabaio.

- Não é bem assim, não – redargüiu Lídia. – O senhor realmente anda extrapolando em seus erros. Certa vez, chegou aqui uma família da cidade vizinha. De condição econômica comum, porque não soubessem da restrição alimentar, o senhor os fez voltar a casa, sem ao menos oferecer um passe! A distância que percorreram é enorme! Essa idéia de disciplina exagerada nunca funcionou com ninguém, mas se ao menos fosse imposta a todos, menos mal seria.

- Quero dizê que tem muito inimigo desencarnado querendo me dirrubá, dirrubá oceis e dirrubá a casa. Ceis tão seno influenciado pelas treva, tem piedade, ó Jesus! Nóis vamo construí a casa nova, bem grande, pra ampliá o trabaio. Só vai pô o pé lá dentro quem tivé prerparado – é isso que tão me soprano aqui no ouvido, agora. E depois...

Urtigão foi interrompido por outro trabalhador indignado:

- Outro absurdo é o senhor querer construir uma casa que custará milhões. Onde já se viu isso?! Casa espírita é e tem que ser o mais simples possível. Sei de muita gente que teve vidência aqui, cujo quadro revelou um galpão. É uma pena que essas pessoas não tenham coragem de dizer o que percebem. Acharam-se loucas, só por a visão discordar do que está no projeto. Coitadas! De que adiantou construir aquela outra, enorme, que está às moscas?

Urtigão fechou uma das mãos, batendo com o pulso na mesa. A voz estava alterada:

- Ocê deixa eu concluí o que eu tava dizeno, diacho! Cala a boca, que ocê fala dimais. As norma da casa tem que sê cumprida. Médio intelectuar é um perigo. Ceis tão agino iguar eles! Vão entrá num tratamento mais forte. Quem num tivé satisfeito com as regra da casa, a porta da rua é serventia. E eu vou dizê mais uma coisa que eu num quero que tenha aqui. É o trabaio em dois lugá. Aqui num tem segredo entre nóis, oceis sabe, né? Tem médio que qué fazê sopa num centro e vem pra cá trabaiá na desobisessão. Coisa escondida tá proibida. Tem que me falá.

Nesse momento, ergue-se Emília que, tendo segurado seu impulso, não consegue mais esperar para dizer:

- Quer dizer que se alguém for atropelado na rua, terei de pedir permissão ao senhor para chamar o corpo de bombeiros?! – disse provocando.

Urtigão se coça todo. Desconfia de algo e olha sob a mesa:

- Eu sabia que era ocê, cão. Purguento! – E continua: - Tinha até um grupo que tava atuano na cozinha daqui e freqüentano terrero de Umbanda. Fui atrás e descobri, pois observo tudo. Tive que expursá eles.

- Qual o problema uma pessoa freqüentar terreiro de Umbanda, seu Urtigão?! A Umbanda é uma religião pura. Seus verdadeiros adeptos são legítimos cristãos. O senhor precisa rever seus conceitos! A verdadeira Umbanda só faz o bem. Isso de sacrificar animais é coisa de umbanda de fachada. O senhor está agindo em relação à Umbanda como os chamados “evangélicos” agem em relação ao Espiritismo. O senhor necessita de uma reciclagem urgentemente.

O grupo reunido era formado por uns poucos médiuns conscientes das arbitrariedades de Urtigão, um tanto de médiuns indiferentes e, fazendo maioria, os “tapados” – termo utilizado por um trabalhador da casa. Fica aqui a pergunta: você faz parte de qual grupo?

- Será que realmente há problemas graves aqui? – perguntou alguém do grupo dos “tapados”.

- Não vejo nenhum – disse o outro. – Seu Urtigão disse que a porta da rua é serventia da casa?

- Creio que ele disse diferente. Deve ser engano seu, não?

- É verdade. Ele não disse isso. Enganei-me. (Para pessoas assim, só o tempo como remédio. “O tempo é que cura o queijo”, como diz um ditado mineiro).

- Há outro ponto – disse Jorge. – O preço dos ingressos está salgado demais. Ninguém compra coisa tão cara. E é um almoço seguido de outro. Nós não precisamos disso. Deus tem nos ajudado além da conta, visto que recebemos, pelo que já pude perceber, bem mais, mas bem mais mesmo, do que necessitamos. Uma casa espírita deve trabalhar com o mínimo necessário de dinheiro. Ele deve entrar pela porta exprimido, e sair multiplicado pela bênção de Deus, sob pena de a casa mergulhar em queda espiritual. Tive oportunidade de várias vezes em uma única semana, observar serem descarregadas donativos de todo tipo.

- É verdade – reforçou Lídia. – E nós não temos controle de nada do que chega. Não sabemos quem doa isso ou aquilo. Sabemos de nada! Se o senhor morrer, seu Urtigão, vamos procurar a quem? Onde a contabilidade da casa?

Urtigão, a estas palavras, persignou-se.

-Tá tudo carculado. Eu faço as conta aqui. E só conto o milagre, num conto os doador. Inclusive, tem um hômi que me deu um apartamento e pediu pra eu não falá quem ele é. Ele disse que se eu contá, ele num vorta. Os outro são assim também.

- Ouvi de seu amigo que o senhor comprou esse apartamento, e também outro! – lembrou Cris Helen.

- Misera! – resmungou Urtigão. – Se fô quem to pensano, num é meu amigo. É um doido que vive no meu pé, obsidiado. Eu vô entrá cum processo na justiça, pruquê careço de respeito. E dirigindo-se ao cachorro: - Cão, vai pra fora! Já pro portão!

- Seu filho também disse isso – reforçou Xandra.

- Ocê entendeu errado, com certeza – respondeu Urtigão.

- Quer dizer que o senhor é um médium que aceita presentes? Isso vai contra todo o ensinamento espírita.

A reunião estava desgastante. O pior cego é aquele que não quer enxergar. E quando ele não quer, só a dor para abrir seus olhos. Turrão ao extremo, Urtigão empunhava sua espingarda e fazia careta, qual um general rigoroso. Emburrado, sua cabeça é mais dura que concreto. Todos os questionamentos eram lídimos. Urtigão tinha tudo para atuar construtivamente, mas interesses trazidos de outras vidas foram mais fortes que sua vigilância.

Mais uma vez Cris Helen tenta argumentar:

- Uma coisa gravíssima que o senhor precisa mudar é o comércio em sua casa. Ela pode ser um centro espírita, desde que não seja mercado. O senhor vem afastando mesas e cadeiras para que seus produtos sejam visualizados logo à entrada. O senhor está pisando em falso, num buraco sem fundo.

- É também um erro o centro ser na casa do senhor. Fica fácil misturar as coisas e achar que centro e casa são uma coisa só, e que o senhor é quem manda em ambos – acrescentou uma mulher baixa.

- E da onde vô tirá dinheiro pra mantê o centro, ara! – bufou.

- Aqui entra dinheiro de sobra, que nós já sabemos. Isso já foi dito.

Giovane, um médium tímido e magro, teve um lampejo:

- Estou começando a entender! Vejam bem. Seu Urtigão não revela a contabilidade; cobra ingressos caros; quer colocar em destaque seu comércio, cada vez mais; afirma que não entra tanto dinheiro assim... Então, o que entra...

Giovane não pôde terminar. Urtigão dera tiros para o alto, ameaçando alvejar seus questionadores. Foi um tumulto. Além dos tiros, ordenou ao seu cachorro:

- Pega, cão! Vamo!

Estava dissolvido mais um grupo mediúnico. Impossível continuar ali, naquele clima de desconfiança. Alguns médiuns procurariam outro lugar para trabalhar. Mas só os que já tinham olhos de ver.

domingo, 6 de março de 2011

sexta-feira, 28 de novembro de 2008